segunda-feira, 23 de janeiro de 2017





Há Palavras que Nos Beijam

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

Alexandre O'Neill, 
in 'No Reino da Dinamarca'



Foto:Pesquisa Google

domingo, 22 de janeiro de 2017





quatro e meia da manhã
(Tradução: Jorge Wanderley)
os barulhos do mundo

com passarinhos vermelhos,
são quatro e meia da
manhã,
são sempre

quatro e meia da manhã,

e eu escuto
meus amigos:
os lixeiros
e os ladrões
e gatos sonhando com
minhocas,
e minhocas sonhando
os ossos
do meu amor,
e eu não posso dormir
e logo vai amanhecer,
os trabalhadores vão se levantar
e eles vão procurar por mim
no estaleiro
e dirão:
“ele tá bêbado de novo”,
mas eu estarei adormecido,
finalmente, no meio das garrafas e
da luz do sol,
toda a escuridão acabada,
os braços abertos como
uma cruz,
os passarinhos vermelhos
voando,
voando,
rosas se abrindo no fumo
e
como algo esfaqueado e
cicatrizando,
como 40 páginas de um romance ruim,
um sorriso bem na
minha cara de idiota.

Charles Bukowski





Foto: https://pt.pinterest.com

sábado, 21 de janeiro de 2017




Sinfonia Hibernal


Adoro o inverno.
Envolvo-me assim mais no teu carinho,
friorenta e louca...
Nascem-me na alma os beijos
que se vão aninhar na tua boca!...
Gosto da neve
a diluir-se ao sol
em risos de cristal!
Vem-me turbar a ânsia do teu rogo...
E a neve fulgente
dos meus dentes trémulos,
vai fundir-se na taça ardente,
rubra e original,
na qual eu bebo os teus beijos em fogo!
Tu adormentas a minha dor
na doce sombra dos teus cabelos,
e eu envolvo-me toda nos teus braços
para dormir e sonhar!...
- lá fora que não deixe de chover,
e o vento que não deixe de clamar!
Deixá-lo gritar!
Que importa o seu clamor,
se me abrasa o teu olhar
vivíssimo?!...
Atei, meu amor, o fogo em que me exalto...
- Enrola-me mais...
ainda mais... no teu afago;
que esta alegria do nosso amor
suavíssimo,
será mais forte e gritará mais alto!

Judith Teixeira,

in 'Antologia Poética'



Foto: https://pt.pinterest.com

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017



Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
Em que espelho ficou perdida
a minha face?

Cecilia Meireles



Foto: https://pt.pinterest.com



quarta-feira, 18 de janeiro de 2017




Ela Canta, Pobre Ceifeira

Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anônima viuvez,

Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente ‘stá pensando.
Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando!

Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro!
Tornai  minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!

Fernando Pessoa,

 in "Cancioneiro"



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O Teu Riso

Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas
não me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a flor de espiga que desfias,
a água que de súbito
jorra na tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.

A minha luta é dura e regresso
por vezes com os olhos
cansados de terem visto
a terra que não muda,
mas quando o teu riso entra
sobe ao céu à minha procura
e abre-me todas
as portas da vida.

Meu amor, na hora
mais obscura desfia
o teu riso, e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso será para as minhas mãos
como uma espada fresca.

Perto do mar no outono,
o teu riso deve erguer
a sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero o teu riso como
a flor que eu esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.

Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
curvas da ilha,
ri-te deste rapaz
desajeitado que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando os meus passos se forem,
quando os meus passos voltarem,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas o teu riso nunca
porque sem ele morreria.

Pablo Neruda,

 in "Poemas de Amor de Pablo Neruda


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terça-feira, 17 de janeiro de 2017




O Jardim e a Noite

Atravessei o jardim solitário e sem lua,
Correndo ao vento pelos caminhos fora,
Para tentar como outrora
Unir a minha alma à tua,
Ó grande noite solitária e sonhadora.
Entre os canteiros cercados de buxo,
Sorri à sombra tremendo de medo.
De joelhos na terra abri o repuxo,
E os meus gestos dessa encantação,
Que devia acordar do seu inquieto sono
A terra negra canteiros
E os meus sonhos sepultados
Vivos e inteiros.
Mas sob o peso dos narcisos floridos
Calou-se a terra,
E sob o peso dos frutos ressequidos
Do presente,
Calaram-se os meus sonhos perdidos.
Entre os canteiros cercados de buxo,
Enquanto subia e caía a água do repuxo,
Murmurei as palavras em que outrora
Para mim sempre existia
O gesto dum impulso.
Palavras que eu despi da sua literatura,
Para lhes dar a sua forma primitiva e pura,
De fórmulas de magia.
Docemente a sonhar entra a folhagem
A noite solitária e pura
Continuou distante e inatingível
Sem me deixar penetrar no seu segredo
E eu senti quebrar-se, cair desfeita,
A minha ânsia carregada de impossível,
Contra a sua harmonia perfeita.
Tomei nas minhas mãos a sombra escura
E embalei o silêncio nos meus ombros.
Tudo em minha volta estava vivo
Mas nada pôde acordar dos seus escombros
O meu grande êxtase perdido.
Só o vento passou e quente
E à sua volta todo o jardim cantou
E a água do tanque tremendo
Se maravilhou
Em círculos, longamente.



Sophia de Mello Breyner Andresen, 

“Cem poemas de Sophia”



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