terça-feira, 15 de agosto de 2017




Lembrar-me-ei de ti

Lembrar-me-ei de ti, e eternamente
Hei de chorar tua fatal ausência,
Enquanto atroz saudade
Não extinguir-me a seiva da existência;
E recordando amores que frui,
Por estes sítios sempre entre suspiros
Lembrar-me-ei de ti.
De noite no aposento solitário
Cismando a sós, verei a tua imagem
Aparecer-me pálida e saudosa
Dos sonhos na miragem;
E então chorando o anjo que perdi,
Meu leito banharei de ardente pranto
Chamando em vão por ti.
Quando a manhã formosa alvorecendo
De seus fulgores inundar o espaço,
Demandarei saudoso
Esse lugar em que no extremo abraço
Teu lindo corpo ao peito meu cingi;
E deste vale os ecos acordando
Perguntarei por ti.
Quando por trás daqueles arvoredos
O sol sumir-se, vagarei sozinho
Por essas sombras, onde outrora juntos
Nos sentamos à borda do caminho;
E às auras que suspiram por ali,
Inda teu doce nome murmurando,
Hei de falar de ti.
Além, onde sonora a fonte golfa
À sombra de um vergel sempre viçoso,
Que sobre nós mil flores entornava,
Irei beijar a relva em que ditoso
Sobre teu seio a fronte adormeci,
E com a clara linfa que murmura,
Suspirarei por ti.
E quando enfim secar-se a última lágrima
Nos olhos meus em triste desalento,
Bem como a lira, em que gemendo estala
A extrema corda com dorido acento,
No sítio em que a primeira vez te vi,
Exalando um suspiro, de saudades
Hei de morrer por ti.

Bernardo Guimarães



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segunda-feira, 14 de agosto de 2017





Chamar a Si Todo o Céu com um Sorriso
que o meu coração esteja sempre aberto às pequenas
aves que são os segredos da vida
o que quer que cantem é melhor do que conhecer
e se os homens não as ouvem estão velhos

que o meu pensamento caminhe pelo faminto
e destemido e sedento e servil
e mesmo que seja domingo que eu me engane
pois sempre que os homens têm razão não são jovens

e que eu não faça nada de útil
e te ame muito mais do que verdadeiramente
nunca houve ninguém tão louco que não conseguisse
chamar a si todo o céu com um sorriso

E. E. Cummings, in "livrodepoemas"
Tradução de Cecília Rego Pinheiro




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domingo, 13 de agosto de 2017





O Desterrado 

Como são brancas as flores 
Deste verde jasminal! 
Recorda a sua fragrância 
Perfumes dum laranjal … 
Mas têm mais suave aroma as rosas de Portugal! 
O coração desses bosques 
O brilhante e o oiro encerra; 
São imensos estes rios, imensos o vale e a serra … 
Mas não têm a formosura 
Dos campos da minha terra! 
Estes astros são mais belos, é mais belo o seu fulgor … 
Mas luzem no céu do exílio; não lhes tenho igual amor… 
Ai, astros da minha terra, quem me dera o vosso alvor! 
Que me importam os esplendores, 
prodígios que vejo aqui, aves de vivas plumagens, 
os cantos do juruty, se lhes faltam as belezas da terra onde eu nasci? 
Lá, era a lua mais linda, mais para os olhos as flores, 
mais castos os beijos dados em mais sinceros amores; 
tinham seus bosques modestos mais inspirados cantores. 
Tudo aqui veste mais galas, de mais viçoso matiz! 
Ai que importa, se a saudade ao proscrito sempre 
diz que não há terra formosa sem o sol do seu país?

Francisco Gomes de Amorim, poeta português




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sábado, 12 de agosto de 2017




As luas

Sobre a população desta amarga cidade
Pairam, longínquas, as sombras de duas grandes lusas.

Elas velam o sono de Deus.
Uma está posta sobre os olhos de Deus,
E é por seu intermédio que os divinos olhos
Penetram os pensamentos e as dores
Do coração aflitíssimo dos homens.

A outra lua está colocada sobre o cérebro de Deus;
- E é a música, e é o sonho, e é o maravilhamento
De novas artes puras e perfeitas,
Que os homens jamais hão de conhecer.

Poesias, 1949
Múcio Leão, poeta e jornalista brasileiro



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Amor

A jovem deusa passa
Com véus discretos sobre a virgindade;
Olha e não olha, como a mocidade;
E um jovem deus pressente aquela graça.

Depois, a vide do desejo enlaça
Numa só volta a dupla divindade;
E os jovens deuses abrem-se à verdade,
Sedentos de beber na mesma taça.

É um vinho amargo que lhes cresta a boca;
Um condão vago que os desperta e toca
De humana e dolorosa consciência.

E abraçam-se de novo, já sem asas.
Homens apenas. Vivos como brasas,
A queimar o que resta da inocência.

Miguel Torga, in 'Libertação'



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sexta-feira, 11 de agosto de 2017





Todas as Horas

Todas as horas, todos os minutos,
São para mim a véspera da partida.

Preparo-me para a morte, como quem
Se prepara para a vida.

Em qualquer parte eu disse que a Beleza
Não nasce só mas sim acompanhada.

Não são palavras minhas as que eu digo.
À minha boca pertence aos que me amam.

Mudos e sós.
À nossa volta todos os amantes
Sentir-se-ão tranquilos.
Um coração puro
É como o Sol:
Brilha todos os dias.

Raúl de Carvalho, in 'Realidade Branca'



quarta-feira, 9 de agosto de 2017





Faz-se Luz

Faz-se luz pelo processo
de eliminação de sombras
Ora as sombras existem
as sombras têm exaustiva vida própria
não dum e doutro lado da luz mas no próprio seio dela
intensamente amantes    loucamente amadas
e espalham pelo chão braços de luz cinzenta
que se introduzem pelo bico nos olhos do homem

Por outro lado a sombra dita a luz
não ilumina    realmente    os objectos
os objectos vivem às escuras
numa perpétua aurora surrealista
com a qual não podemos contactar
senão como amantes
de olhos fechados
e lâmpadas nos dedos    e na boca


Mário Cesariny, in "Pena Capital"



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