segunda-feira, 10 de abril de 2017






Poesia Depois da Chuva
                         (a Maria Guiomar)

Depois da chuva o Sol - a graça.
Oh! a terra molhada iluminada!
E os regos de água atravessando a praça
luz a fluir, num fluir imperceptível quase.
Canta, contente, um pássaro qualquer.
Logo a seguir, nos ramos nus, esvoaça.

O fundo é branco - cal fresquinha no casario da praça.
Guizos, rodas rodando, vozes claras no ar.
Tão alegre este Sol! Há Deus. (Tivera-O eu negado
antes do Sol, não duvidava agora.)
Ó Tarde virgem, Senhora Aparecida! Ó Tarde igual
às manhãs do princípio!

E tu passaste, flor dos olhos pretos que eu admiro.
Grácil, tão grácil!... Pura imagem da Tarde...
Flor levada nas águas, mansamente...
(Fluía a luz, num fluir imperceptível quase...)


Sebastião da Gama,
in 'Pelo Sonho é que Vamos'



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domingo, 9 de abril de 2017








A tempestade


Estão calmos o céu e a terra – mas não adormecidos;
sem ânimo, como nós sob o efeito das grandes paixões,
e tão silenciosos como se despertássemos de profundos
                                       pensamentos.
Estão calmos o céu e a terra; desde as altas hostes
das estrelas ao lago tranquilo e às margens montanhosas,
tudo se concentra numa vida intensa
onde nem uma folha, uma brisa, um reflexo se perdem,
pois todos são uma parte do ser, do sentimento
daquele que de tudo é Criador e defensor.
Agita-se assim a emoção do infinito, sentida
neste abandono em que o homem está menos sozinho;
a verdade que em todo o nosso ser se funde
e nos purifica de nós mesmos é um acorde,
alma e fonte da música que nos ensina
a eterna harmonia, derramando um encantamento
lendário, como a cintura de Vénus,
que reúne tudo pela beleza, e desafiaria
a Morte, se tivesse o verdadeiro poder de destruir.
Não foi sem razão que os antigos Persas edificaram
as aras nos mais elevados lugares, no cume
das montanhas que contemplar a terra, e assim
                                      escolhem
um templo verdadeiro e sem muralhas, onde encontram
o Espírito – e nunca em santuários que as nossas mãos
constroem em seu louvor. Vinde então comparar
colunas e altares de ídolos, góticos ou gregos,
com os lugares sagrados da Natureza, a terra e o ar,
e não vos confineis a templos que limitam as vossas
                                     preces.
O céu mudou-se – e que transformação! Oh noite,
tempestade, trevas, sois surpreendentemente fortes,
embora sedutoras no vosso poderio, como o brilho
dos olhos sombrios duma mulher! Ao longe,
de monte em monte, entre os ecos dos rochedos
o trovão vibra. Não é duma única nuvem que vem,
mas cada montanha encontrou agora a sua linguagem,
e o Jura responde, com o seu manto de neblina,
aos jubilosos Alpes, cujo apelo ressoa vivamente.
Tudo chegou contigo – noite tão gloriosa,
a que não se destinam os nossos sonhos; deixa-me
                                     partilhar
do teu violento, longínquo encantamento
uma parte da tempestade e de ti mesma, noite!
Ah, como resplandece o lago, um fosfórico mar,
e a chuva é impelida e abate-se sobre a terra!
Mais uma vez tudo é escuridão – e, agora, a alegria
das colinas sonoras freme com todo o excesso
que delas nasce como se fosse um novo cataclismo.
…………………………………………………………………………..
Se pudesse encarnar e tirar agora do meu seio
aquilo que nele é mais profundo, se pudesse cingir
com palavras estes meus pensamentos, e assim exprimir
alma, coração, e espírito, paixões e todos os
                                     sentimentos,
ah, tudo o que poderia desejar, e desejo,
sofro, conheço e sinto, sem que morra, numa só palavra
– e que essa palavra fosse “Relâmpago!” – eu a diria;
mas não, vivo e morro voltando para o silêncio apenas,
com sufocadas vozes que guardo como uma espada…



Lord Byron


Fonte:https://autoreselivros.wordpress.com/2013/05/26/a-tempestade-de-lord-byron/
Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/




Devaneio


Perdi-te e nunca foste meu,
Perdi-me em ti como num desejo,
Éramos só os dois: tu e eu,
Éramos alma, éramos lampejo.
Possuí-te em sortilégios secretos
Na minha pele, na carne e no meu sangue
Eras o rio profundo dos afectos
Onde mergulhava e emergia exangue.
Em ti derramei lágrimas de espantos,
Gargalhadas cálidas e anseios
Pois que eram para ti todos meus cantos
De pele, de alma e coração cheios.
Lembro-te na memória dos meus dias,
Na vida que almejava e se logrou.
És agora sombra das minhas noites frias,
Aquela sombra cujo vento olvidou.
Ficaram palavras inacabadas
Num sonho que por ser, ficou desfeito
Em longas e eternas alvoradas.
Esqueço-me de ti de manhãzinha
Quando o sol reabre a minha porta
E me chama por me julgar morta.
E nunca foram ditas as palavras
Que silenciassem madrugadas...



Tereza Brinco Oliveira, 
in Laços de Luar e Outras Histórias.



Foto: Katia Chausheva



sábado, 8 de abril de 2017




Amei-te com as palavras
com o verde ramo das palavras
e a pomba assustada do coração.

Amei-te com os olhos
o espelho doido dos olhos
e a sede inextinguível da boca.

Amei-te com a pele
as pernas e os pés
e todos os gritos que trago
por debaixo da roupa.

Amei-te com as mãos
As mesmas com que te digo adeus.


Rosa Lobato de  Faria


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 7 de abril de 2017




Eis-me


Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses
Para ficar sozinha ante o silêncio
Ante o silêncio e o esplendor da tua face
Mas tu és de todos os ausentes o ausente
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo
[em que não moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silêncio
Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes o ausente



Sophia de Mello Breyner Andresen, 
in 'Livro Sexto'




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quarta-feira, 5 de abril de 2017




Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto
E hoje, quando me sinto.
É com saudades de mim.
Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...
Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.
O pobre moço das ânsias...
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que me abismaste nas ânsias.
Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.
Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.
Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.

Mario Sá Carneiro
Paris, 1913


Fonte: http://escritores.online/escritor/mario-sa-carneiro/
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terça-feira, 4 de abril de 2017




Amei Demais
Madruguei demais.
Fumei demais.
Foram demais todas as coisas que na vida eu emprenhei.
Vejo-as agora grávidas.
Redondas. Coisas tais,
como as tais coisas nas quais nunca pensei.
Demais foram as sombras. Mais e mais.
Cada vez mais ardentes as sombras que tirei
do imenso mar de sol, sem praia ou cais,
de onde parti sem saber por que embarquei.
Amei demais. Sempre demais. E o que dei
está espalhado pelos sítios onde vais
e pelos anos longos, longos, que passei
à procura de ti. De mim. De ninguém mais.
E os milhares de versos que rasguei
antes de ti, eram perfeitos.
Mas banais.



Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'



Fonte: http://www.citador.pt/
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