domingo, 5 de março de 2017



XXI


Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
E se a terra fosse uma coisa para trincar
Seria mais feliz um momento…

Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural…
Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva…

O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica…
Assim é e assim seja…


7-3-1914

“O Guardador de Rebanhos”. Poemas de Alberto Caeiro 
(Heterônimo de Fernando Pessoa)


Foto:https://pt.pinterest.com/cinafraga/

sábado, 4 de março de 2017



Paz


Traz-me um pedaço de céu
um rumor de asas, uma flor amarela.
Peço-te que em todo o lado procures
olhos azuis ou castanhos, peles de todas as cores
rezas, canções, danças secretas.
Extermina no pó todos os horrores
e apodrece os malefícios da louca humanidade.
Ri-te e ama no branco dos lençóis, no azul das águas
num abraço fraterno a respirar doçura.
Traça um armistício da lua até à terra
numa onda de paz que nos transborde e submerja
Que o único gume a existir
seja o das bocas que se beijam.



Margarida Piloto Garcia


Foto:Julia Borodina

sexta-feira, 3 de março de 2017




E de novo a armadilha dos abraços


E de novo a armadilha dos abraços.
E de novo o enredo das delícias.

O rouco da garganta, os pés descalços
a pele alucinada de carícias.

As preces, os segredos, as risadas
no altar esplendoroso das ofertas.

De novo beijo a beijo as madrugadas
de novo seio a seio as descobertas.

Alcandorada no teu corpo imenso
teço um colar de gritos e silêncios
a ecoar no som dos precipícios.

E tudo o que me dás eu te devolvo.
E fazemos de novo, sempre novo
o amor total dos deuses e dos bichos.


Rosa Lobato de Faria





Foto:Pesquisa google




A Noite Desce

Como pálpebras roxas que tombassem
Sobre uns olhos cansados, carinhosas,
A noite desce... Ah! doces mãos piedosas
Que os meus olhos tristíssimos fechassem!

Assim mãos de bondade me beijassem!
Assim me adormecessem! Caridosas
Em braçados de lírios, de mimosas,
No crepúsculo que desce me enterrassem!

A noite em sombra e fumo se desfaz...
Perfume de baunilha ou de lilás,
A noite põe embriagada, louca!

E a noite vai descendo, sempre calma...
Meu doce Amor tu beijas a minh'alma
Beijando nesta hora a minha boca!

Florbela Espanca, 
in "Livro de Sóror Saudade"




Foto:Gustave Jean Jacquet (1846-1909)

quinta-feira, 2 de março de 2017




Conquista


Livre não sou, que nem a própria vida
Mo consente.
Mas a minha aguerrida
Teimosia
É quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente.
Livre não sou, mas quero a liberdade.
Trago-a dentro de mim como um destino.
E vão lá desdizer o sonho do menino
Que se afogou e flutua
Entre nenúfares de serenidade
Depois de ter a lua!


Miguel Torga

quarta-feira, 1 de março de 2017



O silêncio

O silêncio é a minha maior tentação.
As palavras, esse vício ocidental,
estão gastas, envelhecidas, envilecidas.
Fatigam, exasperam.
E mentem, separam, ferem.
Também apaziguam, é certo, mas é tão raro!
Por cada palavra que chega até nós,
ainda quente das entranhas do ser,
quanta baba nos escorre em cima
a fingir de música suprema!
A plenitude do silêncio só os orientais a conhecem.


Eugénio Andrade


Foto:https://pt.pinterest.com/cinafraga/

terça-feira, 28 de fevereiro de 2017




Só eu Sinto Bater-lhe o Coração

Só eu Sinto Bater-lhe o Coração
Dorme a vida a meu lado, mas eu velo.
(Alguém há-de guardar este tesoiro!)
E, como dorme, afago-lhe o cabelo,
Que mesmo adormecido é fino e loiro.

Só eu sinto bater-lhe o coração,
Vejo que sonha, que sorri, que vive;
Só eu tenho por ela esta paixão
Como nunca hei-de ter e nunca tive.

E logo talvez já nem reconheça
Quem zelou esta flor do seu cansaço...
Mas que o dia amanheça
E cubra de poesia o seu regaço!


Miguel Torga, in 'Diário (1946)'


Foto:https://pt.pinterest.com/cinafraga/