segunda-feira, 3 de abril de 2017




Vou passar a noite com estes dias.
Com o sorriso que deixaste nos lençóis.
Ainda ardo com os restos do teu nome
e vejo com os teus olhos as coisas que tocaste.
Estou entre o pão e a mesa, no copo que levas à boca.
Na boca que me guarda.
E não sei o que sou entre ontem e o que vier.
Ontem era o rio ao entardecer, o olhar que acaricia a luz.
O meu filho escreve nos seixos da praia e eu invento
passos para os decifrar.
Todos rolam para longe.
É assim o mar. Vou aprendendo com as ondas
a desfazer-me em espuma.
Há sempre uma gaivota que grita quando estou perto,
sempre uma asa entre o céu e o chão da casa.
Mas nada me pertence,
nem as palavras com que cimento as horas.
Talvez o amor seja uma pequena diferença entre
fusos horários ou o acordo ortográfico
que só existe no fundo da pele.
Mas aqui onde não sou
o que me funda é a certeza que existes.



-Rosa Alice Branco 

1950 Portugal



Extraído do livro Os dias do amor, pag 280
Painting by Serge Marshennikov

domingo, 2 de abril de 2017




Ama-me

Aos amantes é lícito a voz desvanecida.
Quando acordares, um só murmúrio sobre o teu ouvido:
Ama-me. Alguém dentro de mim dirá: não é tempo, senhora,
Recolhe tuas papoulas, teus narcisos. Não vês
Que sobre o muro dos mortos a garganta do mundo
Ronda escurecida?

Não é tempo, senhora. Ave, moinho e vento
Num vórtice de sombra. Podes cantar de amor
Quando tudo anoitece? Antes lamenta
Essa teia de seda que a garganta tece.

Ama-me. Desvaneço e suplico. Aos amantes é lícito
Vertigens e pedidos. E é tão grande a minha fome
Tão intenso meu canto, tão flamante meu preclaro tecido
Que o mundo inteiro, amor, há de cantar comigo.



Hilda Hilst, 
in 'Preludios-Intensos para os Desmemoriados do Amor'



Fonte: http://www.citador.pt/
Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sábado, 1 de abril de 2017



O teu amor absoluto

O teu amor absoluto
é como a hera que envolve as paredes da casa.
Quero ser a casa
e que arranhes a cal da minha pele
e te aninhes nos meus ouvidos fendas
e perturbes a porta minha boca.
E por fim
procures o perigo das janelas
e enfrentes os meus olhos
infinitos de mágoa
noite e assombração.



Rosa Lobato de Faria


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 31 de março de 2017



Deixa-me errar alguma vez,
porque também sou isso: incerta e dura,
e ansiosa de não te perder
agora que entrevejo um horizonte.
Deixa-me errar e me compreende
porque se faço mal é por querer-te
desta maneira tola, e tonta,
eternamente recomeçando a cada dia
como num descobrimento
dos teus territórios de carne e sonho,
dos teus desvãos de música ou vôo,
teus sótãos e porões
e dessa escadaria de tua alma.
Deixa-me errar mas não me soltes


para que eu não me perca
deste tênue fio de alegria
dos sustos do amor que se repetem
enquanto houver entre nós essa magia.



Lia Luft




Painting: by Serge Marshennikov

quinta-feira, 30 de março de 2017




Para Atravessar Contigo o Deserto do Mundo


Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento

Sophia de Mello Breyner Andresen, 
in 'Livro Sexto'





quarta-feira, 29 de março de 2017





DESVENDAI O OLHAR

Liberta, deixei para trás o casulo da crisálida.
Voei soberana vestida de asas leves.
Fiz caminho, rasei jardins. beijei flores.
Embriagada de perfume.
Subi ao topo de um cedro esguio.
Feliz embalada nos braços do vento amei a vida.
Tão longe minha visão contemplava.
Vales verdes, rios saltitantes.
O ventre da terra a explodir em flor.
colunas de fumo espessas, e translucidos seres cambaleantes.
Estremeci.
Pedi a uma ave branca leva-me até lá. disse levo. 
mas venda-me os olhos por favor. Como verás a rota então?.
Não temas, sou a paz.
Rasamos céus, adentramos poeiras.
enfrentamos chuvas ácidas.
Fizemos acrobacias para fugir das bombas que caiam como meteoritos arder, 
nas terras queimadas onde já jaziam as flores.
Esbogalhados meus olhos, seca minha boca pela sede das fontes poluidas.
Pedi á ave branca aporta aí, num cato agreste a tentar florir.
Como Borboleta duas gotas bebi.
Cansada adormeci.
Sonhei que amanhã
Na hora em que o sol nascerá
A humanidade cantará um hino de fraternidade.
Sei é sonho, ideia vã.
Visto-me de esperança.
Aconteça o milagre,
Soltas estão as aves da paz, rumo á liberdade!


Augusta Mar.



https://www.facebook.com/augustamaria.goncalves

Painting by Serge Marshennikov

terça-feira, 28 de março de 2017




Flores

De um pequeno degrau dourado ,
entre os cordões de seda,
os cinzentos véus de gaze,
os veludos verdes
e os discos de cristal que enegrecem como bronze ao sol ,
vejo a digital abrir-se sobre um tapete de filigranas
de prata, de olhos e de cabeleiras.

Peças de ouro amarelo espalhadas sobre a ágata,
pilastras de mogno sustentando uma cúpula de esmeraldas,
buquês de cetim branco e de finas varas de rubis
rodeiam a rosa d'água.

Como um deus de enormes olhos azuis e de formas
de neve, o mar e o céu atraem aos terraços de mármore
a multidão das rosas fortes e jovens.


Arthur Rimbaud


Fonte: https://pensador.uol.com.br/

Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/