quarta-feira, 24 de julho de 2019





Toma-me



Toma-me. A tua boca de linho sobre a minha boca
Austera. Toma-me agora, antes
Antes que a carnadura se desfaça em sangue, antes
Da morte, amor, da minha morte, toma-me
Crava a tua mão, respira meu sopro, deglute
Em cadência minha escura agonia.

Tempo do corpo este tempo, da fome
Do de dentro. Corpo se conhecendo, lento,
Um sol de diamante alimentando o ventre,
O leite da tua carne, a minha
Fugidia.
E sobre nós este tempo futuro urdindo
Urdindo a grande teia. Sobre nós a vida
A vida se derramando. Cíclica. Escorrendo.

Te descobres vivo sob um jogo novo.
Te ordenas. E eu deliquescida: amor, amor,
Antes do muro, antes da terra, devo
Devo gritar a minha palavra, uma encantada
Ilharga
Na cálida textura de um rochedo. Devo gritar
Digo para mim mesma. Mas ao teu lado me estendo
Imensa. De púrpura. De prata. De delicadeza.


Hilda Hilst




Foto: David Hamilton (photographer)

segunda-feira, 22 de julho de 2019





Eu te amo

Antes e depois de todos os acontecimentos
Na profunda imensidade do vazio
E a cada lágrima dos meus pensamentos.

Eu te amo

Em todos os ventos que cantam,
Em todas as sombras que choram,
Na extensão infinita do tempo
Até a região onde os silêncios moram.

Eu te amo

Em todas as transformações da vida,
Em todos os caminhos do medo,
Na angústia da vontade perdida
E na dor que se veste em segredo.

Eu te amo

Em tudo que estás presente,
No olhar dos astros que te alcançam
Em tudo que ainda estás ausente.

Eu te amo

Desde a criação das águas,
desde a idéia do fogo
E antes do primeiro riso e da primeira mágoa.

Eu te amo perdidamente
Desde a grande nebulosa
Até depois que o universo cair sobre mim
Suavemente.



Adalgisa Nery

(Brasil 1905 – 1980)




Imagem:  https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 18 de julho de 2019






Alma

Capturada na malha de rosas
Do formoso corpo terrestre
Terás outra vez reclinada alcançado
Essa coisa p’ra mim
Sendo luz rara
P’ra mim, brancura de ouro
Na senda ombreada em que avanço?
Decerto serás mais valente donzela
Que essa suspirando chorosa receosa
De cintura de lírios diadema de estrelas
Aguardando à ombreira
Dos céus implorando que eu venha
A ti.


Ezra Pound
USA(Hailey, Idaho) 1885
Itália (Veneza) 1972
in O livro de Hilda
Editor: Assirio & Alvim


Fonte do Poema: http://cantodaalma-cantodaalma.blogspot.com/


Imagem: Julia Borodina Photography

sexta-feira, 28 de junho de 2019





(Por TI)


Passarei

Para além das montanhas azuis
Para além dos mares infinitos
Por entre estradas e vales
Tristemente cantando
Minhas dores aguentando
Passo a passo
Por entre o espaço
Nunca perdendo a esperança
de ver um dia
O teu sorriso de criança.


Bruno Sousa - Portugal




Photography by Nicole Burton


quarta-feira, 12 de junho de 2019






Como é belo seguir-te
ó jovem que ondeias
tranqüilo pelas ruas noturnas.
Se paras numa esquina, longe
eu pararei, longe
de tua paz, -- ó ardente
solidão a minha.


Sandro Penna, poeta italiano (1906- 1977).





Foto:  https://www.pinterest.pt/cinafraga/

domingo, 9 de junho de 2019





Cala-te, voz que duvida
e me adormece
a dizer-me que a vida
nunca vale o sonho que se esquece.
Cala-te, voz que assevera
e insinua
que a primavera,
a pintar-se de lua
nos telhados,
só é bela
quando se inventa
de olhos fechados
nas noites de chuva e de tormenta.
Cala-te, sedução
desta voz que me diz
que as flores são imaginação
sem raiz.
Cala-te, voz maldita
que me grita
que o sol, a luz e o vento
são apenas o meu pensamento
enlouquecido…
(E sem a minha sombra
o chão tem lá sentido!)
Mas canta tu, voz desesperada
que me excede.
E ilumina o Nada
com a minha sede.


José Gomes Ferreira



Foto:  https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 6 de junho de 2019





Mysticismo Humano



A alma é como a noute escura, immensa e azul,
Tem o vago, o sinistro, e os canticos do sul,
Como os cantos d'amor serenos das ceifeiras
Que cantam ao luar, á noute pelas eiras...
Ás vezes vem a nevoa á alma satisfeita,
E cae sombria, vaga, e meuda e desfeita...
E como a folha morta em lagos somnolentos
As nossas illusões vão-se nos desalentos!

Tem um poder immenso as Cousas na tristeza!
Homem! conheces tu o que é a natureza?...
- É tudo o que nos cerca - é o azul, o escuro,
É o cypreste esguio, a planta, o cedro duro,
A folha, o tronco a flor, os ramos friorentos,
É a floresta espessa esguedelhada aos ventos;
Não entra o vicio aqui com beijos dissolutos,
Nem as lendas do mal, nem os choros dos lutos!...

- E os que viram passar serenos os seus dias...
E curvados se vão, ás longas ventanias,
Cheio o peito de sol, atravez das florestas,
Á calma do meio dia... e dormiam as sestas,
Tranquillos sobre a eira, entre as hervas nas leivas...
Vão cansados depois, entre os ramos e as seivas,
Outra vez sob o Sol - a sua eterna crença! -
Em fructos resurgir á natureza immensa,
E, aos beijos do luar, descansarem felizes,
Da bem amada ao pé, no meio das raizes!

Morrer é livramento! oh deve saber bem
Sentir-se dilatar na Natureza mãe!
Ser tronco, ramo ou flor, nuvem, herva ou alfombra,
A rosa que perfuma, a arvore que dá sombra!
Estremecer na encosta ás nocturnas geadas,
E recortar o azul das noutes constelladas!

Oh pelo claro azul d'essas noites serenas,
Que o segador trigueiro entôa as cantilenas,
Tristes como a lua e o espinho dos martyrios,
E que atravez do azul parecem cair lyrios!...
Quando a brisa levanta as folhas indiscretas,
Noivam os rouxinoes e se abrem as violetas...
E a Natureza tem como um sabor de beijos,
Que obriga a soluçar a alma de desejos!...

Que segredos dirão nas brisas mensageiras,
Á doçura da lua, a flor das larangeiras,
O lyrio, a madresilva, os jasmins vacillantes,
Que foram já, talvez, seios fortes e amantes,
E que hoje' á branca luz dos myrthos sideraes,
Conversam sobre o amor e os gosos ideaes
Do tempo, que a fallar corriam breve as horas,
Que seus olhos leaes tinham a côr d'amoras,
E debaixo do Ceu teciam longas danças,
Ao pé da amante meiga e de compridas tranças!...

No lago somnolento a flor do nenuphar
Talvez é um coração que abre para chorar!
O lyrio um seio bom, - e as violetas curvadas
São os olhos talvez das doces bem amadas!...

Feliz o semeador que vive entre os arados,
O campo, os lentos bois, longe dos povoados,
Entre os rijos irmãos humildes e trigueiros,
Que vivem sob o sol, á chuva, aos nevoeiros,
E quando á noute finda os suarentos trabalhos,
Vem a doce mulher buscal-o nos atalhos,
Cujo olhar como a lua é tranquillo e consola,
E descanta chorando á noute na viola!...

E os que andam pelo mar, alegres e contentes,
Entre as ondas e o Ceu, saudosos, negligentes,
Entre os cantos do vento, olhos fitos nos ceus,
Entre o azul, o escuro, e os frios escarceus,
Hombro a hombro o abysmo, - abysmo sempre aos pés,
Que dormem á poesia, á lua das marés,
E morrem uma noute, ó mar, aos teus emballos,
Deixando uns olhos bons e meigos a choral-os!

Eu por mim não terei um astro bom nos Ceus,
Nem uns olhos leaes que chorem pelos meus,
E que inda a fronte mal me obscureça a magoa,
Como espelhos d'amor já sejam rasos d'agua!...
Sósinho passarei, e não irei jámais,
Pelas murtas com ella ás tardes outomnaes;
De inverno não terei os consollos do lar,
Nem do estio a doçura immensa do luar;
Meus filhos não irão jámais colher os ninhos;
Ninguem virá á tarde esperar-me nos caminhos!



António Gomes Leal, poeta português (1848- 1921)
in 'Claridades do Sul'



Fonte do poema: http://www.citador.pt/


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/