terça-feira, 14 de julho de 2020


Para Ser Lido Mais Tarde







Um dia
Quando já não vieres dizer-me vem
Jantar

Quando já não tiveres dificuldade
Em chegar ao puxador
Da porta quando

Já não vieres dizer-me Pai
Vem ver os meus deveres

Quando esta luz que trazes nos cabelos
Já não escorrer nos papéis em que trabalho

Para ti será o começo de tudo

Uma outra vida haverá talvez para os teus sonhos
Um outro mundo acolherá talvez enfim a tua oferenda

Hás-de ter alguma impaciência enquanto falo
Ouvirás com encanto alguém que não conheço
Nem talvez ainda exista neste instante

Mas para mim será já tão frio e já tão tarde

E nem mesmo uma lembrança amarga
Ou doce ficará
Desta hora redonda
Em que ninguém repara



Mário Dionísio,


in 'O Silêncio Voluntário'

terça-feira, 26 de maio de 2020





Queima o sangue um fogo de desejo,
De desejo a alma é ferida,
Dá-me os teus lábios: o teu beijo
É o meu vinho e minha mirra.
Reclina para mim a cabeça
Ternamente, faz que eu durma
Sereno até que sopre um dia alegre
E se dissipe a névoa noturna.



Alejandro Pushkin,

Poeta romântico russo. (1799-1837)




Daniel Murtagh Photography


Auto Retrato de Júlio Pomar 



sábado, 23 de maio de 2020

O poeta, escritor e presidente da Sociedade Portuguesa de Autores, José Jorge Letria, escreveu um poema sobre o confinamento a que a pandemia do Covid-19 obriga.








Esta ausência não foi por nós pedida,
Este silêncio não é da nossa lavra,
Já nem Pessoa conversa com Pessoa,
Com o feitiço sempre imenso da palavra
Este tempo só é o nosso tempo
Porque é nossa a dor que nos sufoca
E faz de cada dia a ferida entreaberta
Do assombro que esquivando-se nos toca
Esta ausência é dos netos, dos filhos, dos avós,
É a casa alquebrada pelo medo,
É a febre a arder na nossa voz
Por saber que o mal a magoa em segredo
Este silêncio é um sussurro tão antigo
Que mata como a peste já matava;
Vem de longe sem nada ter de amigo
Com a mesma angústia que nos castigava
Esta ausência é uma pátria revoltada
Que se fecha em casa sempre à espera
Que a febre não a vença nem lhe roube
A luz mansa que lhe traz a Primavera
Esta casa somos nós de sentinela,
À espera que a rua de novo nos console
E que festeje debruçada à janela
A alegria que só nasce com o sol
Esta ausência mais tarde há-de ter fim,
Por nada lhe faltar nem inocência;
Que se escute o desejo de saúde
Anunciando que vai pôr fim à inclemência
Que se abram as portas e as janelas,
Que o medo, derrotado, parta sem destino
Por ser esse o sonho colorido
Que ilumina o riso de um menino.


José Jorge Letria

(20 de Março de 2020)







Fonte:  https://expresso.pt/coronavirus/2020-03-21-Jose-Jorge-Letria-escreve-poema-sobre-o-covid-19-A-Vida-Triunfa-em-Casa