segunda-feira, 12 de agosto de 2019







Anunciação



Voam-me pássaros em torno,
numa ciranda sem motivos.
A estrada é fria.
Estou de branco.
Brilha uma estrela em minha mão.

Revoam pássaros em torno.
Meu ombro esquerdo vai ferido.
Medrosos passos vão levando
a fina sombra do meu corpo.

Volteiam folhas,
dança o vento
e a gaze clara do vestido.
Minha cabeça vai pendida
e há uma estrela em minha mão.

Que estranho o caminho andado,
de branco, na estrada fria,
por entre pássaros voando,
por sobre flores caindo
e o ombro esquerdo sangrando.

O mar canta em meus ouvidos
e a Montanha inacessível
estende ramos de paz.
Passam âncoras e cruzes
e há uma estrela em minha mão.

Por que me levam de branco,
na fria estrada de pedra,
com este ombro sangrando,
entre perfumes e asas?

Que anunciam essas cruzes?
Essas âncoras partidas?
Esses pássaros revoando?
E essa estrela em minha mão?

Quem me leva e para onde
com essa estrela na mão?

Lila Ripoll, poetisa e militante brasileira (1905- 1967).



Foto:  https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quarta-feira, 24 de julho de 2019





Toma-me



Toma-me. A tua boca de linho sobre a minha boca
Austera. Toma-me agora, antes
Antes que a carnadura se desfaça em sangue, antes
Da morte, amor, da minha morte, toma-me
Crava a tua mão, respira meu sopro, deglute
Em cadência minha escura agonia.

Tempo do corpo este tempo, da fome
Do de dentro. Corpo se conhecendo, lento,
Um sol de diamante alimentando o ventre,
O leite da tua carne, a minha
Fugidia.
E sobre nós este tempo futuro urdindo
Urdindo a grande teia. Sobre nós a vida
A vida se derramando. Cíclica. Escorrendo.

Te descobres vivo sob um jogo novo.
Te ordenas. E eu deliquescida: amor, amor,
Antes do muro, antes da terra, devo
Devo gritar a minha palavra, uma encantada
Ilharga
Na cálida textura de um rochedo. Devo gritar
Digo para mim mesma. Mas ao teu lado me estendo
Imensa. De púrpura. De prata. De delicadeza.


Hilda Hilst




Foto: David Hamilton (photographer)

segunda-feira, 22 de julho de 2019





Eu te amo

Antes e depois de todos os acontecimentos
Na profunda imensidade do vazio
E a cada lágrima dos meus pensamentos.

Eu te amo

Em todos os ventos que cantam,
Em todas as sombras que choram,
Na extensão infinita do tempo
Até a região onde os silêncios moram.

Eu te amo

Em todas as transformações da vida,
Em todos os caminhos do medo,
Na angústia da vontade perdida
E na dor que se veste em segredo.

Eu te amo

Em tudo que estás presente,
No olhar dos astros que te alcançam
Em tudo que ainda estás ausente.

Eu te amo

Desde a criação das águas,
desde a idéia do fogo
E antes do primeiro riso e da primeira mágoa.

Eu te amo perdidamente
Desde a grande nebulosa
Até depois que o universo cair sobre mim
Suavemente.



Adalgisa Nery

(Brasil 1905 – 1980)




Imagem:  https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 18 de julho de 2019






Alma

Capturada na malha de rosas
Do formoso corpo terrestre
Terás outra vez reclinada alcançado
Essa coisa p’ra mim
Sendo luz rara
P’ra mim, brancura de ouro
Na senda ombreada em que avanço?
Decerto serás mais valente donzela
Que essa suspirando chorosa receosa
De cintura de lírios diadema de estrelas
Aguardando à ombreira
Dos céus implorando que eu venha
A ti.


Ezra Pound
USA(Hailey, Idaho) 1885
Itália (Veneza) 1972
in O livro de Hilda
Editor: Assirio & Alvim


Fonte do Poema: http://cantodaalma-cantodaalma.blogspot.com/


Imagem: Julia Borodina Photography

sexta-feira, 28 de junho de 2019





(Por TI)


Passarei

Para além das montanhas azuis
Para além dos mares infinitos
Por entre estradas e vales
Tristemente cantando
Minhas dores aguentando
Passo a passo
Por entre o espaço
Nunca perdendo a esperança
de ver um dia
O teu sorriso de criança.


Bruno Sousa - Portugal




Photography by Nicole Burton


quarta-feira, 12 de junho de 2019






Como é belo seguir-te
ó jovem que ondeias
tranqüilo pelas ruas noturnas.
Se paras numa esquina, longe
eu pararei, longe
de tua paz, -- ó ardente
solidão a minha.


Sandro Penna, poeta italiano (1906- 1977).





Foto:  https://www.pinterest.pt/cinafraga/

domingo, 9 de junho de 2019





Cala-te, voz que duvida
e me adormece
a dizer-me que a vida
nunca vale o sonho que se esquece.
Cala-te, voz que assevera
e insinua
que a primavera,
a pintar-se de lua
nos telhados,
só é bela
quando se inventa
de olhos fechados
nas noites de chuva e de tormenta.
Cala-te, sedução
desta voz que me diz
que as flores são imaginação
sem raiz.
Cala-te, voz maldita
que me grita
que o sol, a luz e o vento
são apenas o meu pensamento
enlouquecido…
(E sem a minha sombra
o chão tem lá sentido!)
Mas canta tu, voz desesperada
que me excede.
E ilumina o Nada
com a minha sede.


José Gomes Ferreira



Foto:  https://www.pinterest.pt/cinafraga/