quinta-feira, 9 de maio de 2019










Saborear o sonho



Eu queria sorver o perfume da tua madrugada
colar a mim o azul do céu sem dizer mais nada
saborear o sonho imenso de estar aqui
fechando os olhos e pensando em ti
escrever frases
até que o dia adormeça dentro de mim
cerrar o peito e inventar uma poesia
que não tivesse fim
soltar montanhas de frases
em vírgulas nunca ditas nem inventadas
e nos lábios da minha serra linda e deslumbrante
deixar um beijo de mel com sabor adoçante




António José da Silva, escritor e teatrólogo português 1705-1739






Christian Coigny Photography

sábado, 4 de maio de 2019






Atração e Repulsão

Eu nada mais sonhava nem queria
Que de ti não viesse, ou não falasse;
E como a ti te amei, que alguém te amasse,
Coisa incrível até me parecia.

Uma estrela mais lúcida eu não via
Que nesta vida os passos me guiasse,
E tinha fé, cuidando que encontrasse,
Após tanta amargura, uma alegria.

Mas tão cedo extinguiste este risonho,
Este encantado e deleitoso engano,
Que o bem que achar supus, já não suponho.

Vejo, enfim, que és um peito desumano;
Se fui té junto a ti de sonho em sonho,
Voltei de desengano em desengano.



Adelino Fontoura, poeta, jornalista e ator brasileiro (1859-1844).



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quarta-feira, 1 de maio de 2019






Um Diamante



Existe
Um diamante
No coração da lua ou dos ramos ou da minha nudez
E não há nada no universo como um diamante
Nada em toda a mente.
O poema é uma gaivota descansando em um cais no fim do oceano.
Um cão uiva na lua
Um cão uiva nos ramos
Um cão uiva na nudez
Um cão uivando com a mente pura.
Peço ao poema que ele seja tão puro quanto a barriga de uma gaivota.
O universo desmorona e revela um diamante
Duas palavras chamadas gaivota estão pacificamente flutuando lá onde as ondas estão.
O cão está morto lá com a lua, com os ramos, com minha nudez
E não há nada no universo como um diamante
Nada em toda a mente.



Jack Spicer



Foto:  https://www.pinterest.pt/cinafraga/

segunda-feira, 29 de abril de 2019






A ponte



Para cruzá-la ou não cruzá-la
Eis a ponte
Na outra margem alguém me espera
Com um pêssego e um pais
Trago comigo oferendas desusadas
Entre elas um guarda-chuva de umbigo de madeira
Um livro com os pânicos em branco
E um violão que não sei abraçar
Venho com as faces da insônia
Os lenços do mar e das pazes
Os tímidos cartazes da dor
As liturgias do beijo e da sombra
Nunca trouxe tanta coisa
Nunca vim com tão pouco
Eis a ponte
Para cruzá-la ou não cruzá-la
E eu vou cruzar
Sem prevenções
Na outra margem alguém me espera
Com um pêssego e um país
.


Mario Benedetti  “Antologia poética”





Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sábado, 27 de abril de 2019






Se puderes



Dobra essa esquina e abre os olhos
para me espreitares por dentro
Em qualquer pedaço de gesto, demora-te.
No intervalo da minha ausência
muda o tempo do verbo, mas não o próprio verbo
Desagua o verso sem pressa e faz fintas à vida
sem esquecer que a felicidade é um abraço
imprevisto
Se puderes
perde o rasto da razão mais-que-perfeita
e sorve o vento embalado num beijo inesquecível
a bater no chão fecundo do meu seio.
Se quiseres
vem com o vazio das mãos ávidas de mim
perseguindo o impensável sem curvas nem ossos
com o tempo a chiar e a tomar para si o pó dos dias
Se quiseres
ama esta inevitabilidade feita de um querer comum
e escreve sobre o amor abrigo ou inquietação
Depois
se puderes
se quiseres
sente as impronunciáveis emoções
e no obsceno arrepio que inventamos
a vida será chama sem palavras
e nada mais importará



Margarida Piloto Garcia




Foto:  David Dubnitskiy