sábado, 3 de novembro de 2018





Uma Pequenina  Luz


Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a adivinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Brilhando indeflectível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não é ela que custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
indefectível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:
brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
no meio de nós.
Brilha



Jorge de Sena, poeta e crítico literário português (1919-1978).




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segunda-feira, 29 de outubro de 2018






Instante

O espanto abriu meu pensamento
Com idioma vindo do delírio,
Dos receios indefesos, dos louvores sem raízes,
No perdão oferecido sem razão.
O espanto abriu meu pensamento
Na noite carregada de lamentos
Em linguagem universal
Fluindo do eco perdido
Com passos de presságio amanhecendo.
Corpos florindo na pele da terra
Acendendo vida nas rosas e nos vermes,
Aumentando a potência do limo,
Preparando a primavera nos campos,
Ventres irrigando secas raízes,
Cogumelos róseos crescendo
Na umidade das faces.
Coagulação de prantos na semente
Das constelações adivinhadas.
E no faminto inconsciente, o tempo
Sorvendo com fúria o seu sustento
No insondável silêncio de mim mesma.



Adalgisa Nery, poeta, jornalista e política brasileira (1905-1980).




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quinta-feira, 25 de outubro de 2018






Sou essa Flor

Tua vida é um grande rio, vai caudalosamente,
a sua beira, invisível, eu broto docemente.
Sou essa flor perdida entre juncos e achiras
que piedoso alimentas, mas acaso nem olhas.

Quando cresces me levas e morro em teu seio,
quando secas morro pouco a pouco no lodo;
Mas de novo volto a brotar docemente
quando nos dias belos vais caudalosamente.

Sou essa flor perdida que brota nas tuas margens
humilde e silenciosa todas as primaveras.



Alfonsina Storni, poetisa argentina (1892-1938).



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segunda-feira, 22 de outubro de 2018





Uma Prece


Muitas vezes o vento do ocidente cantava para mim.
Haviam vozes no córrego e riachos,
E árvores lamentosas diziam para mim, meu Deus, de ti.
E eu não ouvi. Oh! abra pensamentos em meus ouvidos.

Os juncos sussurando baixo quando eu pensava:
"Seja forte, ó amigo, seja forte, adie os medos vãos,
Não da alma com dúvidas, Deus não pode mentir".
E eu não ouvi. Oh! abra pensamentos em meus ouvidos.

Haviam muitas estrelas para guiar meus pés,
Muitas evzes, a lua delicada, ouvindo meus suspiros,
Alugando nuvens e mostrando de uma rua de prata.
E eu não vi. Oh! Desvenda-me os olhos.

Anjos me acenavam incessantemente
e andavam comigo, sob os céus sombrios.
O amado Cristo estendia Suas mãos para mim;
E eu não vi. Oh! Desvenda-me os olhos.


Alfred Douglas, poeta britânico (1870- 1945).



Fonte do poema: http://clubedepoetashomenagens.blogspot.com/2013/09/alfred-douglas.html

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quinta-feira, 18 de outubro de 2018





Ternura

Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor
seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível
dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura
dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer
que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas
nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras
dos véus da alma...
É um sossego, uma unção,
um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta,
muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite
encontrem sem fatalidade
o olhar estático da aurora.



Vinícius de Moraes,
Diplomata, poeta e compositor brasileiro (1913-1980).


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quarta-feira, 17 de outubro de 2018





As  Palavras

Adiro a uma nova terra adiro a um novo corpo
As palavras identificam-se com o asfalto negro
O tropel das nuvens
A espessura azul das árvores acesas pelos faróis
O rumor verde
As palavras saem de um ferida exangue
De teclas de metal fresco
De caminhos e sombras
Da vertigem de ser só um deserto
De armas de gume branco
Há palavras carregadas de noite e de ombros surdos
E há palavras como giestas vivas
Matrizes primordiais matéria habitada
Forma indizível num rectângulo de argila
Quem alimenta este silêncio senão o gosto de
Colocar pedra sobre pedra até á oblíqua exactidão?
As palavras vêm de lugares fragmentários
De uma disseminação de iniciais
De magmas respirados
De odor de gérmen de olhos
As palavras podem formar uma escrita nativa
De corpos claros
Que são as palavras?Imprecisas armas
Em praias concêntricas
Torres de sílex e de cal
Aves insólitas
As palavras são travessias brancas faces
Giratórias
Elas permitem a ascensão das formas
Elevam-se estrato após estrato
Ou voam em diagonal
Até à cúpula diáfana
As palavras são por vezes um clarão no dia calcinado
Que enfrentam as palavras?O espelho
Da noite a sua impossível
Elipse
Saem da noite despedaçadas feridas
E são signos do acaso pedras de sol e sal
A da sua língua nascem estrelas trituradas


António Ramos Rosa, poeta português (1924- 2013)




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domingo, 14 de outubro de 2018






Amo-te (mais linda namorada)
Como a ninguém na terra inteira e eu
Amo-te bem mais que tudo que há no céu
Há luz solar e canto à sua chegada
Embora o inverno espalhe em toda parte
Tanto silêncio e tanta escuridão
Que ninguém mais percebe outra estação
Grassar na vida (minha vida à parte) –
E se o que se diz mundo por favor
Ou sorte ouvisse o canto (ou visse que
A luz do meio-dia se avizinha
Quão mais feliz o coração caminha
Aperto de mais perto de você
Creria (namorada) só no amor



E. E. Cummings, poeta estado-unidense (1894- 1962).



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