domingo, 26 de agosto de 2018





Como é belo seu rosto matutino
Sua plácida sombra quando anda

Lembra florestas e lembra o mar
O mar o sol a pique sobre o mar

Não tive amigo assim na minha infância
Não é isso que busco quando o vejo
Alheio como a brisa
Não busco nada
Sei apenas que passa quando passa
Seu rosto matutino
Um som de queda de água
Uma promessa inumana
Uma ilha uma ilha
Que só vento habita
E os pássaros azuis

Alberto de Lacerda, Poeta português (1928-2007).
in 'Exílio'


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sábado, 25 de agosto de 2018





O que eu adoro em ti não são teus olhos,
teus lindos olhos cheios de mistério,
por cujo brilho os homens deixariam
da terra inteira o mais soberbo império.

O que eu adoro em ti não são teus lábios,
onde perpétua  juventude mora,
e encerram mais perfumes do que os vales
por entre as pompas festivais da aurora.

O que eu adoro em ti não é teu rosto
perante o qual o marmor descorara,
e ao contemplar a esplêndida harmonia
Fídias, o mestre, seu cinzel quebrara.

O que eu adoro em ti não é teu colo,
mais belo que o da esposa israelita,
torre de graças, encantado asilo,
aonde o gênio das paixões habita.

O que eu adoro em ti não são teus seios,
alvas pombinhas que dormindo gemem,
e do indiscreto vôo duma abelha
cheias de medo em seu abrigo tremem.

O que eu adoro em ti, ouve, é tu'alma,
pura como o sorrir de uma criança,
alheia ao mundo, alheia aos preconceitos,
rica de crenças, rica de esperança.

São as palavras de bondade infinda
que sabes murmurar aos que padecem,
os carinhos ingênuos de teus olhos
onde celestes gozos transparecem!...

Um não sei quê de grande, imaculado,
que faz-me estremecer quando tu falas,
e eleva-me o pensar além dos mundos
quando, abaixando as pálpebras, te calas.

E por isso em meus sonhos sempre vi-te
entre nuvens de incenso em aras santas,
e das turbas solícitas no meio
também contrito hei-te beijado as plantas.

E como és linda assim! Chamas divinas
cercam-te as faces plácidas e belas,
um longo manto pende-te dos ombros
salpicado de nítidas estrelas!

Na doida pira de um amor terrestre
pensei sagrar-te o coração demente...
Mas ao mirar-te deslumbrou-me o raio...
tinhas nos olhos o perdão somente!


Fagundes Varela  (1841-1875)



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 26 de julho de 2018




Fuga em azul menor

O meu rosto de terra
ficará aqui mesmo
no mar ou no horizonte.
Ficará defronte
à casa onde morei.
Mas o meu rosto azul,
O meu rosto de viagem,
esse, irá pra onde irei.

Todo o mundo físico
que gorjeia lá fora
não me procure agora.
Embarquei numa nuvem
por um vão de janela
dos meus cinco sentidos.
E que adianta a alegria
dizer que estou presente
com o meu rosto de terra
se não estou em casa?

Cassiano Ricardo (1895- 1974).




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domingo, 22 de julho de 2018




" Filho "


TENS EM TI A LUZ DAS MANHÃS.

Sopros de vento.
Arvoredo açoitado
Nem poalha, nem pétala, nem grão de areia.
Chão de minh'alma
Eira de espigas loiras.
Nesgas de tempo.
Espigueiro antigo, arca, tesouro escondido.
Filho meu.
 Meu coração repartido.
Desejo amor, que tenha eu lugar nesse teu peito.
Pois nesta hora, te entrego ao Divino pai numa oração.
Tem meu filho a certeza que Tu sempre foste amor perfeito.
Mesmo nos dias de sombra.
És a flor vestida de abandono.
Nas horas que te leio os olhos distantes
Os lábios calados
E em todas as outras horas,que tu velaste.
A debilidade que me vestia o sono.
Foste o esteio amoroso da minha fragilidade.
Grata por tua benignidade. 


Eu!
Augusta Mar. 18.7.2018.




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sexta-feira, 20 de julho de 2018




Ao Meu Maior Amigo


Quando eu morrer, eu sei, tu escreverás
Triste soneto à morte prematura;
Dirás que a vida cansa em amargura
E, pálido e frio, tu me cantarás.

Nas quadras, reflectido se lerá
De como, vã e breve, a vida expira
E como em terra funda, dura e fria,
A vida, má ou boa, acabará.

A seguir, nos tercetos, tu dirás
Que a morte é mistério, tudo fugaz,
Verdadeira, talvez, a vida além.

Por fim porás a data, assinarás.
E, relido o soneto, ficarás
Contente por tê-lo escrito bem.

Alexandre Search (Heterónimo de Fernando Pessoa)

 in "Poesia"




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sexta-feira, 6 de julho de 2018




Ascensão


Beijava-te como se sobe uma escadaria:
pedra a pedra, do luminoso para o obscuro,
do mais visível para o mais recôndito
- até que os lábios fossem
não o ardor da sede, nem sequer a magia
da subida,
mas o tremor que é pétala do êxtase,
o lento desprender do sol do corpo
com o feliz quebranto dos meus dedos.



João Rui de Sousa, in 'Obstinação do Corpo'




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segunda-feira, 2 de julho de 2018




Os cabelos

Embora o vento passe
Já não se agitam leves. O seu sangue,
Gelando, já não tinge a sua face.
Os olhos param sob a fonte aflita.
Já nada nela vive nem se agita,
Os seus pés já não podem formar passos,
Lentamente as entranhas endurecem
E até os gestos gelam nos seus braços.
Mas os
olhos de pedra não esquecem.
Subindo do seu corpo arrefecido,
Lágrimas lentas rolam pela face,
Lentas rolam, embora o tempo passe.

Destruição


Sophia de Mello Breyner, poetisa e escritora portuguesa (1919-2004).




Foto: ZsaZsa Bellagio