quinta-feira, 14 de dezembro de 2017





III

Quando o gênio da noite vaporosa
Pela encosta bravia
Na laranjeira em flor toda orvalhosa
De aroma se inebria...

No luar junto à sombra recendente
De um arvoredo em flor,
Que saudades e amor que influi na mente
Da montanha o frescor!

E quando, à noite no luar saudoso
Minha pálida amante
Ergue seus olhos úmidos de gozo
E o lábio palpitante...

Cheia da argêntea luz do firmamento,
Orando por seu Deus,
Então... eu curvo a fronte ao sentimento
Sobre os joelhos seus...

E quando sua voz entre harmonias
Sufoca-se de amor
E dobra a fronte bela de magias
Como pálida flor...

E a alma pura nos seus olhos brilha
Em desmaiado véu,
Como de um anjo na cheirosa trilha
Respiro o amor do céu!

Melhor a viração uma por uma
Vem as folhas tremer,
E a floresta saudosa se perfuma
Da noite no morrer...

E eu amo as flores e o doce ar mimoso
Do amanhecer da serra
E o céu azul e o manto nebuloso
Do céu da minha terra!


Manuel Antônio Álvares de Azevedo




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017





Meu coração bate desamparado
onde minhas pernas se juntam.
É tão bom existir!
Seivas, vergônteas, virgens,
tépidos músculos
que sob as roupas rebelam-se.
No topo do altar ornado
com flores de papel e cetim
aspiro, vertigem de altura e gozo,
a poeira nas rosas, o afrodisíaco
incensado ar de velas.
A santa sobre os abismos-
à voz do padre abrasada
eu nada objeto,
lírica e poderosa.

Adélia Prado



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terça-feira, 12 de dezembro de 2017





Amnésia

Posso pedir, em vão, a luz de mil estrelas:
penas obtenho este desenho pardo
que a lâmpada de vinte e cinco velas
estende no meu quarto.

Posso pedir, em vão, a melodia, a cor
e uma satisfação imediata e firme:
 (a lúbrica face do despertador
é quem me prende e oprime).

E peço, em vão, uma palavra exata,
uma fórmula sonora que resuma
este desespero de não esperar nada,
esta esperança real em coisa alguma.

E nada consigo, por muito que peça!
E tamanha ambição de nada vale!
Que eu fui deusa e tive uma amnésia,
esqueci quem era e acordei mortal.

Fernanda Botelho



Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

domingo, 10 de dezembro de 2017




Alegria

Já ouço gritos ao longe
Já diz a voz do amor
A alegria do corpo
O esquecimento da dor

Já os ventos recolheram
Já o verão se nos oferece
Quantos frutos quantas fontes
Mais o sol que nos aquece

Já colho jasmins e nardos
Já tenho colares de rosas
E danço no meio da estrada
As danças prodigiosas

Já os sorrisos se dão
Já se dão as voltas todas
Ó certeza das certezas
Ó alegria das bodas


José Saramago

 "Provavelmente alegria". Lisboa: Editorial Caminho, 1985.





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sábado, 9 de dezembro de 2017





Alvejava de neve outrora a rosa,
Nem como agora, doce recendia;
Baixo voava Amor sem tento um dia,
E na rama espinhosa
De sua flor virgínea se feria.
Do sangue divina! gota amorosa
Da ligeira ferida lhe corria,
E as flores da roseira onde caía
Tomavam do encarnado a cor lustrosa.
Agora formosa
A rúbida flor
Recorda de Amor
A chaga ditosa.

Para os braços da mãe voou chorando;
Um beijo lhe acalmou penas e ardores:
E tão doce o remédio achou das dores,
Que Amor só desejou de quando em quando
Que assim penando,
Com seus clamores
Novos favores
Fosse alcançando.

Súbito voa, pelos ares fende;
As rosas viu de sua dor trajadas,
E que só de suas glórias namoradas
Nada dissessem com razão se ofende:
A mão lhe estende,
E delicioso
Cheiro amoroso
Nelas recende.

Vós que as rosas gentis buscais, amantes,
Nos jardins do prazer,
E, em vez da flor, espinhos penetrantes
Só chegais acolher,
Resignados sofrei, sede constantes,
Que a desventura,
Que a mágoa e dor
Sempre em doçura
Converte Amor.

Almeida Garrett


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sexta-feira, 8 de dezembro de 2017




Sem remédio


Aqueles que me têm muito amor
Não sabem o que sinto e o que sou...
Não sabem que passou, um dia, a Dor
À minha porta e, nesse dia, entrou.

E é desde então que eu sinto este pavor,
Este frio que anda em mim, e que gelou
O que de bom me deu Nosso Senhor!
Se eu nem sei por onde ando e onde vou!!

Sinto os passos de Dor, essa cadência
Que é já tortura infinda, que é demência!
Que é já vontade doida de gritar!

E é sempre a mesma mágoa, o mesmo tédio,
A mesma angústia funda, sem remédio,
Andando atrás de mim, sem me largar!

Florbela Espanca




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017





O Poema Original

Original é o poeta
que se origina a si mesmo
que numa sílaba é seta
noutro pasmo ou cataclismo
o que se atira ao poema
como se fosse um abismo
e faz um filho ás palavras
na cama do romantismo.
Original é o poeta
capaz de escrever um sismo.

Original é o poeta
de origem clara e comum
que sendo de toda a parte
não é de lugar algum.
O que gera a própria arte
na força de ser só um
por todos a quem a sorte faz
devorar um jejum.
Original é o poeta
que de todos for só um.

Original é o poeta
expulso do paraíso
por saber compreender
o que é o choro e o riso;
aquele que desce á rua
bebe copos quebra nozes
e ferra em quem tem juízo
versos brancos e ferozes.
Original é o poeta
que é gato de sete vozes.

Original é o poeta
que chegar ao despudor
de escrever todos os dias
como se fizesse amor.
Esse que despe a poesia
como se fosse uma mulher
e nela emprenha a alegria
de ser um homem qualquer.


José Carlos Ary dos Santos


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