quinta-feira, 19 de outubro de 2017



Uma mulher tem que ter
Qualquer coisa além de beleza
Qualquer coisa de triste
Qualquer coisa que chora
Qualquer coisa que sente saudade
Um molejo de amor machucado
Uma beleza que vem da tristeza
De se saber mulher
Feita apenas para amar
Para sofrer pelo seu amor
E pra ser só perdão

Vinicius de Moraes

 Painting by Serge Marshennikov

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quarta-feira, 18 de outubro de 2017




À altura do teu rosto
os meus olhos habitam no silêncio brilhante.
Não olho: no côncavo vazio recebo-te
igual a ti, a teu lado,
teu rosto me alimenta
de fraterno orvalho.

Tu modelas-me no antigo carinho das únicas
                               coisas preciosas,
refazes-me na transparência fraternal,
dás-me a forma translúcida da vida,
a sede luminosa em que tudo se renova.

(Inédito, 1962)


António Ramos Rosa

Portugal (Faro) 1924-2013



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terça-feira, 17 de outubro de 2017




Soneto VIII


Vagueiam suavemente os teus olhares
Pelo amplo céu franjado em linho:
Comprazem-te as visões crepusculares…
Tu és uma ave que perdeu o ninho.
Em que nichos doirados, em que altares
Repoisas, anjo errante, de mansinho?
E penso, ao ver-te envolta em véus de luares,
Que vês no azul o teu caixão de pinho.
És a essência de tudo quanto desce
Do solar das celestes maravilhas…
Harpa dos crentes, cítola da prece…
Lua eterna que não tivesse fases,
Cintilas branca, imaculada brilhas,
E poeiras de astros nas sandálias trazes…

Alphonsus de Guimarães




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segunda-feira, 16 de outubro de 2017





Peço a paz
e o silêncio

A paz dos frutos
e a música
de suas sementes
abertas ao vento

Peço a paz
e meus pulsos traçam na chuva
um rosto e um pão

Peço a paz
silenciosamente
a paz a madrugada em cada ovo aberto
aos passos leves da morte

A paz peço
a paz apenas
o repouso da luta no barro das mãos
uma língua sensível ao sabor do vinho
a paz clara
a paz quotidiana
dos actos que nos cobrem
de lama e sol

Peço a paz e o
silêncio

Casimiro de Brito, in "Jardins de Guerra"


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domingo, 15 de outubro de 2017




Antes que Seja Tarde

Amigo,
tu que choras uma angústia qualquer
e falas de coisas mansas como o luar
e paradas
como as águas de um lago adormecido,
acorda!
Deixa de vez
as margens do regato solitário
onde te miras
como se fosses a tua namorada.
Abandona o jardim sem flores
desse país inventado
onde tu és o único habitante.
Deixa os desejos sem rumo
de barco ao deus-dará
e esse ar de renúncia
às coisas do mundo.
Acorda, amigo,
liberta-te dessa paz podre de milagre
que existe
apenas na tua imaginação.
Abre os olhos e olha,
abre os braços e luta!
Amigo,
antes da morte vir
nasce de vez para a vida.

Manuel da Fonseca, in "Poemas Dispersos"




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sábado, 14 de outubro de 2017




Carrego seu coração comigo

Eu o carrego no meu coração
Nunca estou sem ele
Onde eu for, você vai, minha querida
Não temo o destino
Você é meu destino, meu doce
Não quero o mundo pois, beleza
Você é meu mundo, minha verdade
Eis o segredo que ninguem sabe
Aqui está a raiz da raiz
O broto do broto
E o céu do céu
De uma arvore chamada vida
Que cresce mais do que a alma pode esperar
Ou a mente pode esconder
E esse é o prodigio
Que mantem as estrelas a distancia
Carrego seu coraçao comigo
Eu o carrego no meu coraçao.

E. E. Cummings



Foto: by Ekin Oklap


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sexta-feira, 13 de outubro de 2017





Vamos através do incêndio
Mas não temas, meu filho,
Podes dormir nos meus braços frescos e fortes,
Embala-te a cadência dos meus passos.

Vamos através do incêndio
E sonhas.
Detrás das tuas pálpebras a tarde
Beija e doira as folhas dos sobreiros.

E quase me esqueço
Deste puro fogo,
P'ra te dar frescura.
Arde o meu sangue calmo.
E o meu suor, arde.

E, devagar,
Vamos através do incêndio.

Dorme, meu filho.

Cristóvam Pavia


 Art By Vicente Romero Redondo

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