terça-feira, 10 de outubro de 2017




IV

Ouvindo um trio de violino, violeta e violoncelo
Simbolicamente vestida de roxo
(Eram flores roxas num vestido preto)
Tão tentadora estava que um diabo coxo
Fez rugir a carne no meu esqueleto.

Toda a pureza do meu amor por ela
Se foi num sopro tombar no pó.
Os seus olhos intercederam por ela…
Mais uma vez eu vi que não me achava só.

Simbolicamente vestida de roxo
(Talvez saudade de vida mais calma)
Tão macerada estava que a asa de um mocho
Adejou agoureira pela minha Alma.

Todos os sonhos do meu amor por ela
Vieram atormentar-me sem dó.
Mas ninguém na terra intercedeu por ela…
Para divinizá-la era bastante eu só.

– Alphonsus de Guimaraens, 




(Dona Mística ‘1899’), em “Obra completa”. [organização Alphonsus de Guimaraens Filho]. Biblioteca luso-brasileira – Série brasileira, 20. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1960.

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segunda-feira, 9 de outubro de 2017




Tentação

Eu fechei os meus lábios para a vida
E a ninguém beijo mais, meus lábios são,
Cmo astros frios que, com a luz perdida,
Rolam de caos em caos na escuridão.

Não que a alma tenha já desiludida
Ou me faleçam os desejos, não!
O que outrem prejulgava uma descida,
É subir para mim, elevação!

Vejo o calvário por que anseio, vejo
O Madeiro sublime, "Glórias" ouço,
E subo! A terra geme... eu paro. (É um beijo.)

A moita bole... Eu tremo. (É um corpo.) Oh Cruz,
Como estás longe ainda! E eu sou tão moço!
E em derredor de mim tudo seduz!...

Mário de Andrade



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sábado, 7 de outubro de 2017




Annabel Lee

Foi há muitos e muitos anos já,
Num reino ao pé do mar.
Como sabeis todos, vivia lá
Aquela que eu soube amar;
E vivia sem outro pensamento
Que amar-me e eu a adorar.
Eu era criança e ela era criança,
Neste reino ao pé do mar;
Mas o nosso amor era mais que amor --
O meu e o dela a amar;
Um amor que os anjos do céu vieram
a ambos nós invejar.
E foi esta a razão por que, há muitos anos,
Neste reino ao pé do mar,
Um vento saiu duma nuvem, gelando
A linda que eu soube amar;
E o seu parente fidalgo veio
De longe a me a tirar,
Para a fechar num sepulcro
Neste reino ao pé do mar.
E os anjos, menos felizes no céu,
Ainda a nos invejar...
Sim, foi essa a razão (como sabem todos,
Neste reino ao pé do mar)
Que o vento saiu da nuvem de noite
Gelando e matando a que eu soube amar.
Mas o nosso amor era mais que o amor
De muitos mais velhos a amar,
De muitos de mais meditar,
E nem os anjos do céu lá em cima,
Nem demônios debaixo do mar
Poderão separar a minha alma da alma
Da linda que eu soube amar.
Porque os luares tristonhos só me trazem sonhos
Da linda que eu soube amar;
E as estrelas nos ares só me lembram olhares
Da linda que eu soube amar;
E assim 'stou deitado toda a noite ao lado
Do meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado,
No sepulcro ao pé do mar,
Ao pé do murmúrio do mar.

Edgar Allan Poe




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sexta-feira, 6 de outubro de 2017




Primeiro de Todos os Meus Sonhos

o primeiro de todos os meus sonhos era sobre
um amante e o seu único amor,
caminhando devagar (pensamento no pensamento)
por alguma verde misteriosa terra

até o meu segundo sonho começar—
o céu é agreste de folhas;que dançam
e dançando arrebatam(e arrebatando rodopiam
sobre um rapaz e uma rapariga que se assustam)

mas essa mera fúria cedo se tornou
silêncio:em mais vasto sempre quem
dois pequeninos seres dormem (bonecas lado a lado)
imóveis sob a mágica

para sempre caindo neve.
E então este sonhador chorou: e então
ela rapidamente sonhou um sonho de primavera
onde tu e eu estamos a florescer

E. E. Cummings



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quinta-feira, 5 de outubro de 2017




Flores

De um pequeno degrau dourado -, entre os cordões
de seda, os cinzentos véus de gaze, os veludos verdes
e os discos de cristal que enegrecem como bronze
ao sol -, vejo a digital abrir-se sobre um tapete de filigranas
de prata, de olhos e de cabeleiras.

Peças de ouro amarelo espalhadas sobre a ágata, pilastras
de mogno sustentando uma cúpula de esmeraldas,
buquês de cetim branco e de finas varas de rubis
rodeiam a rosa d'água.

Como um deus de enormes olhos azuis e de formas
de neve, o mar e o céu atraem aos terraços de mármore
a multidão das rosas fortes e jovens.


Arthur Rimbaud



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quarta-feira, 4 de outubro de 2017





Os dias sem ninguém
pequeníssimos recados escritos à pressa
amachucados nos dedos

foi bela a madressilva
subindo pela noite da morada esquecida

pedras exactas poeiras perfumadas
bichos de lume dormitando na flexibilidade da argila
areias cobertas de insectos ossos dentes
e o rio por onde partem as noites de cansaço

luminosa floração luas ácidas despenhando-se
fendas de terra cidades costeiras pássaros
frágeis caminhos em pleno voo
durante a lucidez tremenda do sonho

restam-me os corredores de vidro
onde posso afagar os restos carbonizados do corpo
abro a porta que dava acesso ao rosto
desço os degraus musgosos do pátio
atravesso o jardim de alvenaria onde vivi
todo este tempo antes de me precipitar



Al Berto

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terça-feira, 3 de outubro de 2017




Mocidade


A mocidade esplêndida, vibrante,
Ardente, extraordinária, audaciosa.
Que vê num cardo a folha duma rosa,
Na gota de água o brilho dum diamante;

Essa que fez de mim Judeu Errante
Do espírito, a torrente caudalosa,
Dos vendavais irmã tempestuosa,
- Trago-a em mim vermelha, triunfante!

No meu sangue rubis correm dispersos:
- Chamas subindo ao alto nos meus versos,
Papoilas nos meus lábios a florir!

Ama-me doida, estonteadoramente,
O meu Amor! que o coração da gente
É tão pequeno... e a vida, água a fugir...


Florbela Espanca, in "Charneca em Flor"


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