segunda-feira, 3 de julho de 2017




Para que alguns queixumes
sejam imaculados na intimidade da boca,
permanece entre os alucinados.
Eles são os justos,
os que como as aves marinhas
pousam sobre as águas a carga da palavra,
o repouso difícil de nomear
pois dele se extrai toda alegria do pranto.
Regiões de um dúbio preciso: a poesia
ondulando transversalmente
a uma nebulosa de sangue e mel,
exposta sempre à ímpar utopia do mundo.
Para que alguma coisa
agrida o corpo onde cintilam os reflexos
e me retorne fragmento sem rasto ou cheiro.
O imaculado clarão
na circulação do sangue
dos que partiram antes da chegada.


João Rasteiro




Fonte: http://nocentrodoarco.blogspot.pt
Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

domingo, 2 de julho de 2017


Homenagem a Sophia  De Mello Breyner  Andresen 
poetisa e escritora portuguesa

1919/2004


Os Nossos Dedos

Os nossos dedos abriram mãos fechadas
Cheias de perfume
Partimos à aventura através de vozes e de gestos
Pressentimos paixões como paisagens
E cada corpo era um caminho
Mas um se ergueu tomando tudo
E escorreram asas dos seus braços.

Florestas, pântanos e rios
Viajamos imóveis debruçados,
Enquanto o céu brilhava nas janelas.

E a cidade partiu como um navio
Através da noite.


Sophia  De Mello Breyner  Andresen

In Coral, 1950


Fonte: http://www.avozdapoesia.com.br/
Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sábado, 1 de julho de 2017



Montanha

Sons sob a luz. Mosteiros,
torres sobrenaturais,
vibrando fluidamente no ar;
como? se o fluxo de mica,
os altos blocos de água,
cintilam sem rumor.

Toda esta arquitectura,
lenta percussão, perpassa;
sobre cerros sonoros;
com o seu contorno
infixo, fulgurando. Detenham-se
as estrelas quando
for noite; preguem-se
outros pregos de prata
fora do céu visível.
Sons já sem luz. Pastores
poisam as ocarinas, bebem;
entre colinas ocas;
o frio coalhado
pelas tetas das cabras.


Carlos de Oliveira, in 'Pastoral'


Fonte: http://www.citador.pt/
Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 30 de junho de 2017




Embala-me


Embala-me, embala-me,
E canta-me cantigas,
Cantigas antigas de embalar meninos.
- Que a tua voz seja um cântico
Onde a minha alma descanse
E alcance os seus destinos.


Que tenha sonhos brancos e suaves,
Aves roçando leve o meu sonhar
Embalando breve, junto a ti, sonhando.
- Ó noite velha, sem estrelas e sem lua,
Nua e tua sinto bem minha alma
Na calma de um lugar agónico e brando.


E canta, canta, meu amor, encanta
Com essa tua voz sonhada e benta,
E lenta, lenta, meu amor, tão lenta.
- Deixa correr a vida! Que importa a vida,
Se no ponto da partida
No teu canto o meu anseio se atormenta!?

António Sousa Freitas


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quinta-feira, 29 de junho de 2017




Diz o meu nome
pronuncia-o
como se as sílabas te queimassem os lábios
sopra-o com a suavidade
de uma confidência
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteça

Porque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contorno

Porque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci

Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos

No húmido centro da noite
diz o meu nome
como se eu te fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome




Mia Couto (Escritor e poeta Moçambicano, 1955- )


Foto: Autor Paulo Almeida

quarta-feira, 28 de junho de 2017




Os Sonhos

De repente acordo e vejo bem perto
De mim, colado quase ao meu, desnudo,
Também, cansado, inerte no veludo,
O corpo dela, sem censura, aberto

O coração, de sentimento incerto,
Às vezes, mesmo, indiferente a tudo.
De tanto vê-la assim me desiludo
E me entristeço sempre que desperto.

Sem esperança de acordar com ela,
Eu fico preso ao meu amor constante
E paro, e penso e sinto, num instante,

Quando ela dorme, assim, imóvel, bela:
...Eu dos seus sonhos estou tão distante,
Que nem parece que estou junto dela.


Abdias Sá (Poeta brasileiro), 
escrito em João Pessoa, 1981.


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

terça-feira, 27 de junho de 2017





O ANJO ANUNCIADOR

 — Ouve, Maria, a nossa
(não, não te assustes!) é uma luminosa
tarefa: retecer
o pequeno clarão que abandonaram,
o lume que anda oculto pela treva!
Porque irás conceber!
Porque a mão, desejosa
e tosca, que O tentara
reter, ainda que leve,
desfez-se ao toque, assim como uma vez
tocado o sopro se desfaz a avara,
a dura contração do peito ansiado...
Mas a haste, o jasmim despetalado,
é tudo o que ainda resta
dos canteiros do céu aqui na terra,
que um seco vento cresta
e uma longa agonia dilacera.
No entanto a morte há de morrer se tu quiseres,
ó gota concebida
bendita entre as mulheres
para que houvesse vida
outra vez, e nascesse desse fundo
obscuro do mundo,
o ninho incompreensível do teu ventre.

Não, não toques ainda
nem a fímbria do manto nem o centro
do mistério que anima a tua túnica:
aguarda, ó muito séria, a ave mansa
e recebe em teu corpo de criança
a Verônica única,
a enxurrada de pétalas te abrindo.

Em tumulto reunidas,
as cores da perdida Primavera
vão retornar, virão
numa enchente de asas, aluvião,
púrpura, sempre-viva, nascitura
estranheza do amor da criatura,
constelação descendo ao rosto teu:
é Ele, é O que reúne o coração
e o grande anel da esfera,
o fogo, a língua ardendo, o incêndio vivo,
a coluna de luz, o capitel que se perdeu...
Que eu

venho anunciar apenas a um esquivo,
humílimo veludo, a frágil chama
que há de crescer em ti, que hás de ser cama
ao parto do Perfeito, e hás de ser cântaro
e fonte e ânfora e água,
hás de ser lago
em que as sombras se afogam, que naufragam
no imenso, ó jovem branca como um lenço;
hás de conter a lágrima
do Infinito, o Seu vulto
e os tumultos da luz na travessia
entre a dádiva, a perda e a renúncia:
quando de um certo dia
cheio de luz amarga

em que serás enfim a sombra esguia
que O deu à luz e que O assistiu morrer...
Atravessa, ó Maria,
os abismos do ser,
ouve este estranho anúncio
e deixa-te invadir para colher,
mais fundo que a razão
e o corpo, o sopro cálido, o prenúncio
da mais viva alegria:
entreabre-te ao clarão
da visita suave,
mas terrível, terrível, deixa a ave
do imenso sacrifício te ofender.

Ó pétala intocada,
hás de sofrer
intensa madrugada
e num lago de luz como afogada
hás de durar suspensa
entre a graça imortal e a dor imensa.

Mas canta, canta agora
como a fonte borbulha, como a agulha
atravessa o bordado,
canta como essa luz pousa ao teu lado
e te penetra e tece a nova aurora,
a nova Primavera e a tessitura
do ramo que obedece e se oferece
para o mistério e pela criatura.

Canta a alucinação,
o toque enfim possível dessa mão
que há de colher para perder e ter
o infinito que nasce do deserto
e a semente que morre se socorre
tudo o que no estertor tentava ser.

Canta a canção do lírio e do alecrim,
essa canção que és e que na treva,
na escuridão da carne, andava perto
da imensidade que te invade. E assim
como o imenso te ampara,
ó voz tão clara
que consolas e elevas,
vem, desperta,
matriz da eternidade e d'O sem-fim,

ó mãe de Deus, canta e roga por mim


Bruno Tolentino



Fonte: http://www.jornaldepoesia.jor.br/
Fito: https://www.pinterest.pt/cinafraga/