sexta-feira, 7 de abril de 2017




Eis-me


Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses
Para ficar sozinha ante o silêncio
Ante o silêncio e o esplendor da tua face
Mas tu és de todos os ausentes o ausente
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo
[em que não moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silêncio
Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes o ausente



Sophia de Mello Breyner Andresen, 
in 'Livro Sexto'




Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

quarta-feira, 5 de abril de 2017




Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto
E hoje, quando me sinto.
É com saudades de mim.
Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...
Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.
O pobre moço das ânsias...
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que me abismaste nas ânsias.
Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.
Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.
Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.

Mario Sá Carneiro
Paris, 1913


Fonte: http://escritores.online/escritor/mario-sa-carneiro/
Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

terça-feira, 4 de abril de 2017




Amei Demais
Madruguei demais.
Fumei demais.
Foram demais todas as coisas que na vida eu emprenhei.
Vejo-as agora grávidas.
Redondas. Coisas tais,
como as tais coisas nas quais nunca pensei.
Demais foram as sombras. Mais e mais.
Cada vez mais ardentes as sombras que tirei
do imenso mar de sol, sem praia ou cais,
de onde parti sem saber por que embarquei.
Amei demais. Sempre demais. E o que dei
está espalhado pelos sítios onde vais
e pelos anos longos, longos, que passei
à procura de ti. De mim. De ninguém mais.
E os milhares de versos que rasguei
antes de ti, eram perfeitos.
Mas banais.



Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'



Fonte: http://www.citador.pt/
Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

segunda-feira, 3 de abril de 2017




Vou passar a noite com estes dias.
Com o sorriso que deixaste nos lençóis.
Ainda ardo com os restos do teu nome
e vejo com os teus olhos as coisas que tocaste.
Estou entre o pão e a mesa, no copo que levas à boca.
Na boca que me guarda.
E não sei o que sou entre ontem e o que vier.
Ontem era o rio ao entardecer, o olhar que acaricia a luz.
O meu filho escreve nos seixos da praia e eu invento
passos para os decifrar.
Todos rolam para longe.
É assim o mar. Vou aprendendo com as ondas
a desfazer-me em espuma.
Há sempre uma gaivota que grita quando estou perto,
sempre uma asa entre o céu e o chão da casa.
Mas nada me pertence,
nem as palavras com que cimento as horas.
Talvez o amor seja uma pequena diferença entre
fusos horários ou o acordo ortográfico
que só existe no fundo da pele.
Mas aqui onde não sou
o que me funda é a certeza que existes.



-Rosa Alice Branco 

1950 Portugal



Extraído do livro Os dias do amor, pag 280
Painting by Serge Marshennikov

domingo, 2 de abril de 2017




Ama-me

Aos amantes é lícito a voz desvanecida.
Quando acordares, um só murmúrio sobre o teu ouvido:
Ama-me. Alguém dentro de mim dirá: não é tempo, senhora,
Recolhe tuas papoulas, teus narcisos. Não vês
Que sobre o muro dos mortos a garganta do mundo
Ronda escurecida?

Não é tempo, senhora. Ave, moinho e vento
Num vórtice de sombra. Podes cantar de amor
Quando tudo anoitece? Antes lamenta
Essa teia de seda que a garganta tece.

Ama-me. Desvaneço e suplico. Aos amantes é lícito
Vertigens e pedidos. E é tão grande a minha fome
Tão intenso meu canto, tão flamante meu preclaro tecido
Que o mundo inteiro, amor, há de cantar comigo.



Hilda Hilst, 
in 'Preludios-Intensos para os Desmemoriados do Amor'



Fonte: http://www.citador.pt/
Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sábado, 1 de abril de 2017



O teu amor absoluto

O teu amor absoluto
é como a hera que envolve as paredes da casa.
Quero ser a casa
e que arranhes a cal da minha pele
e te aninhes nos meus ouvidos fendas
e perturbes a porta minha boca.
E por fim
procures o perigo das janelas
e enfrentes os meus olhos
infinitos de mágoa
noite e assombração.



Rosa Lobato de Faria


Foto: https://www.pinterest.pt/cinafraga/

sexta-feira, 31 de março de 2017



Deixa-me errar alguma vez,
porque também sou isso: incerta e dura,
e ansiosa de não te perder
agora que entrevejo um horizonte.
Deixa-me errar e me compreende
porque se faço mal é por querer-te
desta maneira tola, e tonta,
eternamente recomeçando a cada dia
como num descobrimento
dos teus territórios de carne e sonho,
dos teus desvãos de música ou vôo,
teus sótãos e porões
e dessa escadaria de tua alma.
Deixa-me errar mas não me soltes


para que eu não me perca
deste tênue fio de alegria
dos sustos do amor que se repetem
enquanto houver entre nós essa magia.



Lia Luft




Painting: by Serge Marshennikov