quarta-feira, 18 de março de 2020


Pedro Barroso: Calou-se para sempre o artesão das canções

O músico que, mais do que letras,  escrevia poemas.






Jardim de Poetas



Falei-te sem querer
De coisas belas
Como quem abre janelas
Para lá do horizonte

E tu sem saber lá tricotares
Um romance de palavras
Sem certezas nem futuros
E tu sonhares no areal
Como um jardim de poetas
Superiores e verticais
Em rigor nunca existiu

E tu como se fosse há vinte anos
Subiste ao alto das rochas
Lá onde pousam as gaivotas
Subiste ao alto das dunas
Onde o vento te possui

Cresceu-te no peito um mar de prata
Como se eu fosse alguma vez isento
Como se eu fosse acaso
Alguma vez na vida a perfeição

Mas quando te contei coisas de mim
Daquelas coisas grandes cá de dentro
Caíste em ti no sonho do jardim
E fiz-te então amiga esta canção

E tu ainda sonhas no areal
Um jardim de poetas
Superiores e verticais
Que em rigor nunca existiu

E tu como se fosse há vinte anos
Sobes ao alto das rochas
Lá onde pousam as gaivotas
Sobes ao alto das dunas
Onde o vento te possui

Cresceu-te no peito um mar de prata
Como se eu fosse alguma vez isento
Como se acaso eu fosse
Alguma vez na vida a perfeição

Mas quando te contei coisas de mim
Aquelas coisas grandes cá de dentro
Caíste em ti do sonho e do jardim
E fiz-te então amiga esta canção


Pedro Barroso



Vivian Gerber  Photography

quinta-feira, 5 de março de 2020






À noite.



A música tocava no quintal
Com aquela impronunciável agonia.
Frescas, cheiravam forte a maresia,
As ostras sobre o gelo vesperal.
Ele disse: “Sou só um amigo fiel.”
E então tocou-me as dobras do vestido.
Quão longe de um abraço tinha sido
O toque dessas mãos assim ao léu.
Assim olham-se os pássaros ou gatos,
Assim veem-se as esbeltas amazonas…
O riso de seus olhos vinha à tona,
Sob o ouro de suas pálpebras pacato.
E dos violinos tristes vem a voz
Cantando pela névoa que se adensa:
Dá graças aos céus pela recompensa
Finalmente com o amado estás a sós.

1913


Anna Akhmátova, poetisa russa (1889-1966)


segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020






Noturno



O desenho redondo do teu seio
Tornava-te mais cálida, mais nua
Quando eu pensava nele...Imaginei-o,
À beira-mar, de noite, havendo lua...

Talvez a espuma, vindo, conseguisse
Ornar-te o busto de uma renda leve
E a lua, ao ver-te nua, descobrisse,
Em ti, a branca irmã que nunca teve...

Pelo que no teu colo há de suspenso,
Te supunham as ondas uma delas...
Todo o teu corpo, iluminado, tenso,
Era um convite lúcido às estrelas....

Imaginei-te assim à beira-mar,
Só porque o nosso quarto era tão estreito...
- E, sonolento, deixo-me afogar
No desenho redondo do teu peito...




David Mourão-Ferreira, escritor e poeta português (1927- 1996)

domingo, 23 de fevereiro de 2020







Se jovem fosse toda a gente e o amor,
E a verdade na boca de cada pastor,
Cada um destes prazeres me levaria
A ir ser teu Amor em tua companhia.

Mas ao redil o Tempo recolhe o rebanho,
Quando o rio brame e esfria o rochedo,
É quando Filomela fica como os mudos
E o resto se lamenta de cuidados futuros.

Murcham as flores, e o viço campestre
Ao indócil Inverno logo se submete:
Uma língua de mel, coração sem amor,
Primavera de desejo, Outono de dor.

Os teus vestidos, sapatos, canteiros de rosas,
Tua boina, saia, flores preciosas,
Breve quebram e murcham – esquecidas são,
A loucura é completa, perde-se a razão.

Teu cinto de palhinhas e rebentos de hera,
Tuas fivelas de coral e botões de âmbar –
Entre todos eles nenhum me levaria
A ser teu Amor em tua companhia

Se se fosse jovem e o amor gerasse sempre,
Alegrias sem data, velhice não carente,
Por estes prazeres, minha alma decidia
Ir ser o teu Amor em tua companhia.

Walter Raleigh


England 1552-1618
in Os dias do amor
Editor: Ministério dos Livros





Fonte: http://cantodaalma-cantodaalma.blogspot.com

sexta-feira, 31 de janeiro de 2020






Raro e vazio dia.
Calmo e velho dia.
Os membros lassos debruados deste cansaço sem porquê.

Raro e vazio dia,
assim inteiro e implacável
na solidão grave e trágica do meu quarto nu.

Perdido, perdido, este vagabundear dos meus olhos
sobre os livros fechados e decorados,
sobre as árvores roídas,
sobre as coisas quietas, quietas...

Raro e vazio dia
na minha boca pálida e pouca,
sem uma praga para quebrar a magia do ópio!
Fernando Namora

Meu corpo estiraçado, lânguido, ao logo do leito.

O cigarro vago azulando os meus dedos.

O rádio... a música...

A tua presença que esvoaça
em torno do cigarro, do ar, da música...

Ausência!, minha doce fuga!

Estranha coisa esta, a poesia,
que vai entornando mágoa nas horas
como um orvalho de lágrimas, escorrendo dos vidros
duma janela,

numa tarde vaga, vaga...




Fernando Namora, escritor português (1919-1989).

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020







A Valsa



Deixai que meu coração sonhe.
Pátios na lua,
Suspensos candelabros entre as nuvens.
A valsa num sopro de ventura.
Vestidos bordados a estrelas.
Jarrões suspensos ornados de narcisos.
Já entoa a valsa das flores.
Rodopiam pares, leves corações, como flutuam.
São elevações, suaves patamares.
Jovens casais de elegância aprumo.
Vos digo já que eu afinal.
Não sei se sonho.
Se tudo é verdade.
Porque faz de mim muito mais eu.
Estar dentro de um sonho.
Pois tudo se aparenta tão real.
Vou preparar-me para a valsa…
Resta-me sair do sonho e ser a cinderela,
Sem ter sapatos de cristal.
Eu!

Augusta Mar



https://www.facebook.com/augustamaria.goncalves

sábado, 25 de janeiro de 2020






Um dia chega
de extrema doçura:
tudo arde
Arde a luz
nos vidros da ternura.
As aves
no branco
labirinto da cal.
As palavras ardem,
e a púrpura das naves.
O vento,
onde tenho casa
à beira do outono.
O limoeiro, as colinas.
Tudo arde
na extrema e lenta
doçura da tarde.


Eugénio de Andrade, 

in "Obscuro Domínio"



Marion Cotillard Photography